Porque ainda precisamos falar de machismo em 2020

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Pergunte a si mesmo: a maneira como exerce sua masculinidade, em ações, falas, comportamentos e hábitos, não torna você aquele valentão asqueroso da escola?

Por Giovane Oliveira *

Pare, observe bem o seu redor e repare nas coisas. Em instantes você pode pegar o celular, pedir comida, tentar encontrar uma pessoa para trocar ideia ou se relacionar. Antes da pandemia era possível sair de casa e andar livremente por onde quiser. Entre todas essas facilidades não enxergamos ninguém — aparentemente — sendo impedido de andar, acessar lugares. Quando saímos para um bar, parque ou balada, vemos mulheres e elas não são impedidas de fazer nada. Se ligamos a TV, vemos âncoras mulheres, atrizes e até mesmo parlamentares do sexo feminino, eleitas também pelo voto de mulheres, que não têm restrição alguma para comparecer numa zona eleitoral e digitar os números que bem entender. Tudo parece de fácil acesso para tudo e todos. Mas será mesmo dessa maneira?

Antes de prosseguir quero pedir para você, homem, imaginar mais um cenário: pense em um daqueles típicos valentões de escola te importunando dia e noite, muitas vezes até te agredindo de maneira física e/ou verbal. Ele faz da sua vida um verdadeiro inferno e, quando não te persegue, só a ideia de cruzar com esse abençoado já te deixa nervoso a ponto de querer se esconder pelos corredores e evitar ir para a quadra de futebol. Você até pensa: “Valeria a pena falar sobre isso com alguém?”. Mas todo mundo já sabe que valentões são valentões e eles são assim e ponto final. Eis que em um belo dia a diretora o impede, por meio da autoridade, de fazer isso tudo com você e o caminho para liberdade dentro da escola se abre bem na sua frente. Você se sentiria à vontade e seguro para seguir por esse caminho?

Aqui faço a ressalva que talvez esse exemplo nem faça sentido para você. Seja por você ter sido esse valentão ou por desde muito cedo ter sido ensinado que em situações como essa você precisa se defender, partir pra cima, revidar para não apanhar dobrado quando chegar em casa. Outra coisa a se considerar é que o valentão pode até ser proibido de fazer algo contra você, mas com certeza vai levar um tempo para ele entender o motivo que o levou à proibição e até mesmo eliminar comportamentos resquícios daquelas mesmas atitudes idiotas.

O que tento dizer com isso é que a masculinidade da maneira como vem sendo formada se transforma em machismo, se torna esse valentão asqueroso do colégio, agredindo e atormentando homens e mulheres — as mulheres muito mais, sem a menor sombra de dúvida. 

A masculinidade da maneira como vem sendo formada se transforma em machismo, se torna esse valentão asqueroso do colégio, agredindo e atormentando homens e mulheres”. 

Pense se você, homem, já sentiu medo de broxar pensando na impressão que poderia passar e o quanto isso te tornaria “menos homem”. Analise quantas vezes você já se obrigou a fazer sexo ou até mesmo a ter que achar/comentar que alguma mulher era gostosa apenas porque você é homem e acredita que esse comportamento é o esperado e necessário para que você atenda a essas expectativas. Lembre-se de quantas vezes você precisou demonstrar força física durante uma atividade cotidiana ou na academia, segurar e não manifestar emoções consideradas frágeis, se policiar em como você se aproxima, cumprimenta e fala de outros homens e também não reclamar de trabalho ou do excesso dele. Se você minimamente se reconheceu em algumas dessas situações, quero informar que está tomando várias ações pensando na presença desse “valentão” chamado machismo.

Como disse anteriormente, não tenho a menor dúvida de que são as mulheres as maiores prejudicadas pelo machismo. Claramente vemos isso por dados, como o aumento de 7,3% nos casos de feminicídio no Brasil em 2019, e aqui me refiro aos homicídios dolosos contra mulheres motivados única e exclusivamente pela condição de gênero. Também não podemos deixar de mencionar a diferença escabrosa de salário entre homens e mulheres, que em 2019 superou os 47%. E, por favor, não me venha dizer que a diferença é baseada em performance, e que se as mulheres querem ganhar mais devem se esforçar mais. Os dados estão aí há muitos anos e precisamos evoluir nessa questão para chegar em respostas e ações claras que mudem essa realidade.

Posso citar outras situações tão problemáticas quanto essas, como o número dos casos de estupro, assédio e importunação sexual. Também não vamos esquecer da política, na forma nítida de ataque mais pesado e pessoal às mulheres em relação aos homens, na questão da representatividade e no cotidiano. O valentão do colégio também está presente aqui, tocando seu terror e interferindo na vida de outras pessoas. Mas nesse caso a personificação é mais nítida: nós, homens. Isso mesmo. Nós todos. Eu, você, meus amigos e também os seus. 

E aí você pode se questionar como que você, meu caro leitor, contribui para isso tudo, para que o calo aperte para mulheres e também para os homens. São muitos e variados os motivos, passando por ações, falas, comportamentos e hábitos. Para analisar isso tudo vamos caminhar num caminho estreito, sendo necessário descer um pouco do lugar de certezas para de fato ouvir, refletir e questionar nossas atividades e compreender o que parte considerável da sociedade e da ciência aponta em relação ao machismo e masculinidade tóxica. Te convido a cada quinze dias ler e se colocar a pensar em diversos temas e como agimos sobre eles, percebendo que por mais que as coisas pareçam estar normais, elas não estão. Bem-vindo à coluna De Homem pra Homem.

* Giovane Oliveira é psicólogo e sexólogo clínico e há quatro anos faz parte da plataforma de terapia online Vittude, que conecta psicólogos a pacientes. Além dos atendimentos clínicos, também integra a bancada do DSex, podcast semanal que discute sexualidade e comportamento. 

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