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O apego ao passado dá conforto e alento para superar tempos de incerteza, medo, solidão e ansiedade em relação ao futuro.
Bastam apenas quatro caracteres para resumir 2020: #tbt. O ano tem sido um arrastado e interminável #throwbackthursday. Relembramos lugares que visitamos, viagens de verões passados, festas e encontros com amigos. No tempo livre, ouvimos músicas de flashback, assistimos jogos de futebol de Copas antigas, reprises de novelas, revemos filmes e seriados de décadas atrás. Para muita gente, esse resgate do passado vem servindo como conforto e alento para superar estes tempos de incerteza, medo, solidão e ansiedade em relação ao futuro.
A onda nostálgica varre corações e mentes como um tsunami no isolamento social da pandemia. O sentimento, doce e amargo, surge como uma saudade de coisas e situações que dificilmente pareciam importar apenas algumas semanas ou meses atrás. E que sabemos que vamos ter novamente — embora ninguém saiba quando. “A nostalgia, porém, não pode ser diretamente associada ao distanciamento social. Sempre há saudosistas que se apegam ao passado e sofrem pensando que eram felizes e não sabiam”, explica o psicólogo Hélio Malka y Negri, que integra a plataforma de terapia online Vittude, que conecta psicólogos a pacientes.
Com a paralisação de eventos, campeonatos esportivos e gravações de novelas e séries, a indústria do entretenimento também virou um imenso #tbt. E mais e mais pessoas começaram a curtir conteúdos antigos. Numa pesquisa sobre hábitos na quarentena feita pelo Grupo Consumoteca (especializado em pesquisas de mudanças culturais e comportamentais) com 2.000 brasileiros de todas as classes sociais, 67% dos entrevistados afirmaram assistir a reprises de filmes e programas de TV. Em outro estudo, feito pela plataforma internacional MRC, mais da metade dos entrevistados disseram encontrar conforto em revisitar seus programas de TV, músicas e seriados favoritos.
No streaming musical, a plataforma Spotify acusou o resgate retrô registrando um aumento de 54% no número de usuários que criavam playlists nostálgicas com músicas dos anos 1950 aos 80. Cresceram vertiginosamente os plays de “Jailhouse Rock” (Elvis Presley, 1957), “Bohemian Rhapsody” (Queen,1975), “Take on Me” (a-ha, 1984) e “Sweet Child O’Mine” (Guns N’ Roses, 1987). Interessante é que, no Brasil, uma das músicas antigas mais ouvidas foi “Tempo Perdido”, do Legião Urbana (1986), um clássico sobre desencanto e incerteza.
Um estudo publicado este ano pela revista suíça Frontiers In Psychology revelou que a nostalgia ajuda a combater os sentimentos negativos de tristeza, solidão e falta de sentido na vida. Como numa via de duas mãos, esses estados depressivos desencadeiam a nostalgia mas ela, por sua vez, aumenta a sensação de bem-estar, o otimismo e os sentimentos de conexão com outras pessoas, mesmo que à distância delas.
“Em essência, a nostalgia não é ruim nem boa; depende apenas do uso que se faz dela”, diz o psicólogo Hélio Malka y Negri. “É como folhear um antigo álbum de fotografias. Recordar o passado lhe emociona e dá prazer ou desperta sofrimento, más recordações e negatividade?”.
Revisitar o passado pode ajudá-lo a lembrar que há pessoas em sua vida que se preocupam com você, que você se sentiu melhor do que agora e que voltará se sentir bem novamente no futuro.
Estudiosos afirmam também que, em nível emocional, o apego a músicas, filmes, roupas e objetos do passado funciona como um ursinho de pelúcia ou lençol de berço para uma criança. Classificados como apoios “transicionais”, ajudam a tornar menos traumática a transição de uma fase da vida para outra.
Ainda segundo os psicólogos, sentimentos nostálgicos dão estrutura para ganhar tranquilidade durante um período estressante — desde que numa abordagem positiva. Como se a saudade fosse uma espécie de “chupeta emocional”, ajudando a nos habituarmos a uma nova realidade chocante ou estressante.
O sentimento de saudade do passado começou a ser estudado no início do século 17, definido vagamente como mal de corazón. Em 1688, o estudante de medicina suíço Johannes Hofer, depois de estudar soldados mercenários na guerra, cunhou o termo “nostalgia” combinando duas palavras gregas: nostos (“retorno ao lar”) e algos (“dor”). Analisando os sentimentos de perda de apetite, insônia e ansiedade dos soldados longe de casa, Hofer classificou o “problema” como “doença cerebral de causa essencialmente demoníaca”.
A nostalgia continuou definida como uma patologia neurológica durante os séculos 17 e 18. A certa altura, médicos atribuíram sua causa a um “osso patológico” localizado em algum lugar do corpo — claro que o tal osso nunca foi encontrado. Foi apenas no século 19 que a ciência médica passou a categorizar a nostalgia como uma aflição da psique, predominantemente negativa. Só na década de 1970 incorporou um sentido mais positivo, associado a conforto emocional.
Por enquanto, seja ouvindo músicas antigas ou postando fotos de #tbt, a onda nostálgica parece estar oferecendo às pessoas recursos extras para lidar com a pandemia. Revisitar o passado pode ajudá-lo a lembrar que há pessoas em sua vida que se preocupam com você, que você se sentiu melhor do que agora e que voltará se sentir bem novamente no futuro. A nostalgia está aí. Faça bom uso dela.